João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto é o mais importante poeta da geração de 45. A precisão vocabular e a objetividade renderam ao escritor a alcunha de “engenheiro da palavra”.
João Cabral de Melo Neto nasceu em Recife, no dia 06 de janeiro de 1920. Faleceu no Rio de Janeiro, aos 79 anos, no dia 09 de outubro de 1999
João Cabral de Melo Neto nasceu em Recife, no dia 06 de janeiro de 1920. Faleceu no Rio de Janeiro, aos 79 anos, no dia 09 de outubro de 1999

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Tecendo a Manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

O poema que você leu agora é de autoria de João Cabral de Melo Neto, considerado o mais importante poeta da geração de 1945. Os versos de Tecendo a manhã são emblemáticos e representam bem a obra do poeta que ficou conhecido como o “engenheiro da palavra”, capaz de fazer o leitor sentir o poema como se ele fosse um objeto, e não mera sugestão de sentidos.

João Cabral de Melo Neto nasceu no dia 06 de janeiro de 1920, na cidade do Recife, Pernambuco. Primo do poeta Manuel Bandeira e do sociólogo Gilberto Freyre, viveu parte da infância em engenhos da família, no interior do estado, e aos dez anos regressou à capital, ingressando no curso primário do Colégio de Ponte d'Uchoa, dos Irmãos Maristas. Em 1940, a família do poeta transferiu-se para o Rio de Janeiro, então capital federal. Em 1942, ele publicou seu primeiro livro de poemas, intitulado “Pedra do Sono”, no qual se percebe uma forte influência surrealista, predominando uma atmosfera onírica onde tudo é difuso e impalpável, temática que não mais se repetiria na obra do escritor.

Dentro da perda da memória

Dentro da perda da memória

uma mulher azul estava deitada

que escondia entre os braços

desses pássaros friíssimos

que a lua sopra alta noite

nos ombros nus do retrato.

E do retrato nasciam duas flores

(dois olhos dois seios dois clarinetes)

que em certas horas do dia

cresciam prodigiosamente

para que as bicicletas de meu desespero

corressem sobre seus cabelos.

E nas bicicletas que eram poemas

chegavam meus amigos alucinados.

Sentados em desordem aparente,

ai-los a engolir regularmente seus relógios

enquanto o hierofante armado cavaleiro

movia inutilmente seu único braço.

(in Pedra do Sono)

No Rio de Janeiro foi funcionário do DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público) e, em 1945, deu início à carreira diplomática, representando o país em diversos países, como Portugal e Senegal. Exerceu, simultaneamente à vida de cônsul-geral, a atividade literária, tendo recebido vários prêmios por suas obras, entre eles o Prêmio Olavo Bilac, concedido pela Academia Brasileira de Letras, onde foi empossado no ano de 1968, e o prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro. Em 1990, aposentou-se no posto de embaixador e nessa mesma época descobriu ser portador de uma doença degenerativa incurável, responsável pelas dores de cabeça que atormentavam o poeta e pela perda da visão, fato que o levou ao isolamento e à depressão. Sobre o mal que o acometia, escreveu:

Num Monumento à Aspirina

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

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Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

Entre os principais títulos da obra literária de João Cabral de Melo Neto, estão "Pedra do sono", 1942; "O engenheiro", 1945; "O cão sem plumas", 1950; "O rio", 1954; "Quaderna", 1960; "Poemas escolhidos", 1963; "A educação pela pedra", 1966; "Morte e vida severina e outros poemas em voz alta", 1966; "Museu de tudo", 1975; "A escola das facas", 1980; "Agreste", 1985; "Auto do frade", 1986; "Crime na Calle Relator", 1987; "Sevilla andando", 1989. Em prosa, João Cabral publicou  "O Brasil no arquivo das Índias de Sevilha" (livro de pesquisa histórico-documental editado pelo Ministério das Relações Exteriores), "Juan Miró", 1952, e "Considerações sobre o poeta dormindo", 1941. O poeta faleceu aos 79 anos, no Rio de Janeiro, no dia 09 de outubro de 1999, deixando uma inestimável contribuição para a literatura brasileira.

João Cabral de Melo Neto foi o primeiro poeta a estabelecer uma ruptura entre a poesia romântica e a poesia moderna. Não acreditava que a poesia pudesse ser fruto de mera inspiração: para ele, a poesia devia resultar de um trabalho árduo para que a exatidão fosse alcançada, em uma espécie de “geometrização” da linguagem, característica que lhe rendeu a alcunha de “engenheiro da palavra”. A principal temática de sua obra é a reflexão sobre o fazer poético, o que resultou em uma poesia antilírica, avessa à superficialidade e dirigida ao intelecto, não apenas à emoção.

Para que você conheça um pouco mais a obra de João Cabral de Melo Neto, o Vestibular Brasil Escola mostra para você um fragmento da mais conhecida obra do poeta, o auto de Natal Pernambucano Morte e vida severina. Boa leitura!

Morte e Vida Severina

---      O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte Severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza[...]”.

*A imagem que ilustra o artigo é capa do livro “João Cabral de Melo Neto”, do professor de Teoria literária e Literatura comparada da USP, João Alexandre Barbosa. Editora Publifolha.

** A imagem que ilustra o miolo do artigo foi retirada do site Projeto Portinari. Disponível em Portinari.org


Por Luana Castro
Graduada em Letras