Por Parte de Pai

Por Marina Cabral da Silva

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O menino vivia com os avós, Joaquim e Maria. A mãe tinha morrido e o pai era caminhoneiro. Em uma manhã Maria contou um sonho, tinha sonhado com um animal, mas não se lembrava de qual se tratava, Joaquim a chamou de vaca e no mesmo momento um cambista passou vendendo uma tira de vaca. Ele comprou na hora toda a tira. Ganhou. Comprou a grande casa, cheia de janelas na Rua da Paciência onde eles viviam e daí pra frente se acomodou.

Joaquim tinha uma letra bonita com a qual enfeitava a casa. Tudo o que acontecia na cidade ela anotava. Quem morreu, adoeceu, as visitas, o assunto conversado e a hora. As histórias indevidas eram escritas no alto, assim só quem já tivesse altura e idade as lia. Tinha histórias sobre Maria Turum, negra escrava que antes de morrer já tinha vermes no corpo de tanto ficar deitada. O neto só parou de fazer xixi na cama quando Joaquim ameaçou escrever a história na parede.

Na parede da copa ficava o relógio em forma de oito. Joaquim dava corda de meia em meia hora. A cidade, de tempos em tempos, recebia o Padre Líbero que benzia tudo e todos, usava uma batina escura, tinha as mãos macias, mornas e morenas. Era um homem santo, até Maria que conversava com as almas e acreditava que dormir de meia chamava a morte acreditava nele. Certa vez o padre benzeu o menino. Ele andava escutando barulhos e vendo vultos brancos. Havia momentos em que ele sentia vontade de ir para o seminário.

A noite no seu quarto via tudo se transformar, assim corria e acendia a luz. Ele admirava o avô e suas letras eram sua companhia durante a noite. Nas noites de tempestade ele pedia um lampião, acordava feliz com o rosto sujo pela fumaça do querosene. Joaquim lhe oferecia dinheiro para arrancar os fios brancos, na verdade ele só queria a mão do neto, e quando Joaquim estava triste o menino se oferecia de graça.

Ele brincava na rua e da janela Joaquim ficava vigiando ou abençoando, quem passava por lá o cumprimentava “Oi seu Queiroz” ao que ele respondia “tem dó de nós”. Maria dentro de casa perguntava quem era e ele a respondia. Na cidade havia três moças, Fé, Esperança e Caridade, quando elas o cumprimentavam ele respondia três vezes. A esperança como dizem que é a ultima que morre, nesse caso foi a primeira.

O menino carregava muitas dúvidas e temores. O avô observava tudo e vivia acomodado, no guarda-roupa guardava um terno sobre o qual ninguém comentava.

Jeremias era o galo de estimação do neto. Ele tinha um grande amor por ele, o galo era cego de um olho e o menino o cercava de amor. No dia em que o rádio anunciou um eclipse todos acharam que era o fim do mundo. Maria matou Jeremias para o almoço, o neto fingiu dor de barriga e escapou de comer seu amor. E no fim, o eclipse só matou o Jeremias.

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Na cidade abriu um cinema, quem não lia sentava atrás e pagava menos. Quando o menino aprendeu a ler sentava lá na frente, mas as histórias tinham perdido o encanto. Joaquim não ia ao cinema, dizia não gostar, mas talvez só não quisesse confessar que não conseguia ler as legendas.

Maria, diferente de Joaquim, não gostava do silêncio e conversava, resmungava o tempo inteiro. Falava até com as almas, hora com a de Maria Turum hora com a do filho que morrera.
O menino temia não ser filho do pai e isso o fazia sofrer, pois implicava em não ser neto de Joaquim o que mais lhe doía, ou o temor de ser órfão. Nas poucas vezes que seu irmão mais velho aparecia o guardava conhecendo os temores dele.

Na cidade tudo se comprava na rua, ainda plantava no quintal e às vezes se comprava na venda e no final do mês ao pagar a conta ganhava-se um pote de marmelada. O menino nadava com o primo José, eram amigos, até que ele foi embora pra ser soldado. Ele gostava de gatos, mas o avô não, na verdade os maltratavam. Com o avô aprendeu que homem não deve chorar.

Foi um derrame que acabou com Maria. Ela caiu em cima do machado amolado e cortou a cabeça, daí para frente não foi mais a mesma. E Joaquim mudara, andava desgostoso. Ela piorava, trocava as palavras, não fazia mais nada e Joaquim se entristecia. Maria fugia e se escondia. Joaquim dava a ela um cordão cheio de nós e ela passava o dia a desfazê-los. Não reconhecia mais os filhos.

A tia tinha ido viver com eles e assumira a casa reclamando de tudo. O menino via que aos poucos ia sendo expulso da casa dos avôs e o pai não falava em levá-lo embora.

Certo dia o relógio em forma de oito parou. Joaquim fez um desenho sobre o contorno dele. O medo incomodava até mesmo ele. O tempo lixou a madeira do banco, certo dia Joaquim chamou o neto, falou a ele sobre o tempo que nos engole e a todo o resto também, e como caminhamos para a “boca do tempo”. Ele chorou.

Depois disso o pai do menino o buscou, Joaquim não estava lá, eles já haviam se despedido quando conversaram sobre o tempo. E a avó tinha se despedido há tempos. O menino foi, então, embora.

Por Rebeca Cabral